Saímos há pouco menos de um mês de um importante encontro de vários líderes mundiais de diversos países mais ricos do mundo, que apontaram para um novo cenário de reorganização no ainda duradouro período de pandemia, que está em fase final em alguns países, que já avançam consideravelmente na vacinação, ou ainda em franca ascensão em outros, como o Brasil.
Desta conferência saíram declarações que esses países terão que arcar com importante ajuda financeira e de solidariedade aos países poucos desenvolvidos e para os em desenvolvimento, sob o risco de não haver o fim da pandemia em curto prazo e tampouco a retomada da economia mundial. Essa importante ajuda deverá ser de diversas formas, com dinheiro, com vacinas, com transferência de tecnologia e com o estreitamento das políticas de relações internacionais que possibilitem colocar novamente na rota de desenvolvimento todo o mundo, e não somente as grandes e históricas economias. Serão tempos mais ou menos parecidos com os já vividos em outros momentos de crise, como o vivido após a Grande Depressão de 1929, em que houve a instituição de uma política de welfare state, assim como no pós-guerra (após a Segunda Grande Guerra Mundial) e que se estendeu até perto do fim dos anos 90, com o fim da URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e o estabelecimento de uma nova e ofensiva política neoliberal.
Essa reação neoliberal levou o nome de Consenso de Washington e foi encabeçada pelo Estado Unidos, que tinha à frente Ronald Reagan e pelo Reino Unido que era conduzido à época pela “Dama de Ferro”, como era chamada Margareth Tacher, e tinha como objetivo desmontar os Estados Nacionais onde os Estados e os serviços públicos eram fortes e organizados. Além de estabelecer em diversos países do mundo processo de desmonte das estatais, com gigantescos processos de privatizações em todas as áreas. No Brasil isso foi implementado pelo Governo Collor de Mello, que só não deu continuidade porque sofreu um processo de impeachment em 1993, seu sucessor, Itamar Franco, deu uma segurada no processo, que foi retomado quando da eleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, que conseguiu avançar nas privatizações, mas não da forma que pretendia, mesmo assim privatizou diversas empresas e banco públicos estaduais, além de sucatear alguns serviços públicos essenciais, como o SUS, para tentar colocá-lo também nas mãos da iniciativa privada.
A onda de privatizações e desmonte do estado, só teve um fim quando os governos democráticos e populares de Lula e Dilma, que fortaleceram o papel, a participação do Estado, e conseguiram reestatizar algumas coisas, como a Ultrafértil, empresa de fertilizantes.
O fato é que houve um tempo de interrupção do processo de entrega das nossas estatais e de nossos serviços públicos que foi retomada novamente após o golpe institucional e parlamentar de 2016. Com isso se voltou a ofensiva contra as estatais, o patrimônio público e os direitos das trabalhadoras e trabalhadores, como nunca se viu. E isso mesmo durante um processo sem precedentes de enfrentamento de uma pandemia mundial de coronavírus, momento em que o mundo foi obrigado a chamar uma conferência com os principais países do mundo, menos o Brasil, por causa do seu descaso com a forma e a responsabilidade com que tratou a pandemia, tanto interna como externamente. Objetivo primeiro desta conferência era que se resgatasse o papel de um “capitalismo solidário”, para que o sistema capitalista não fosse esmagado pelas conjunturas de resistência e de fome mundial diante de sua ganância e avareza.
Esses momentos de “Capitalismo Solidário” acontecem em momentos históricos pós-crise, e de solidários não têm nada, somente o instinto de sobrevivência temporária. Ou seja, o capitalismo não dá pontos sem nó, como diziam os mais antigos. Afinal, a essência do capitalismo é a busca desenfreada do lucro, aconteça o que acontecer. E os momentos onde enxergamos alguma humanidade no capitalismo é na verdade o seu mais alto grau de preservação, em que volta a dar atenção à presença e ao papel do Estado, a produzir a geração de políticas públicas e programas sociais e a flexibilização de regras que permitem uma maior organização social e mesmo sindical das trabalhadoras e trabalhadores. Ou seja: nesses tempos, também se observa por parte dos que defendem o neoliberalismo uma certa permissividade da importância do Estado. Porque em muitos momentos é o Estado que acaba segurando a barra do capitalismo, não deixando que se abram as cortinas para a possibilidade de um sistema econômico diferente, ou seja, o socialismo. Milhares de estudos sobre o tema existem e demonstram que não existe capitalismo humanizado, mas que há sempre nestes momentos de crise uma flexão tática do capitalismo, por assim dizer, que levam à possibilidade de se estabelecer outras regras de sobrevivência econômica que permite ao capitalismo moribundo se reinventar. Isso historicamente se chamou de welfare state, momentos em que o estado foi obrigado a prover políticas econômicas que possibilitassem que houvesse um certo grau de inclusão social, evitando assim convulsões sociais que viessem a derrubar de uma vez por todas o regime capitalista.
Já observamos essa flexão tática do capitalismo em diversos momentos da história política contemporânea, principalmente logo após a Segunda Grande Guerra Mundial, como dissemos. Momento em que o avanço do socialismo e da igualdade contagiava, do ponto de vista de sua implementação, principalmente em países onde a desigualdade social era muito grande, a vontade política de mudar o sistema podia trazer graves consequências, e o capitalismo tinha que “dar um tempo” onde imperava em sua forma mais cruel, pois se observava que a ganância e a avareza do sistema forçava a formação de grandes reservas de mão de obra de trabalhadores e trabalhadoras, para que o capitalismo pudesse exercer sua ganância e acumulação de lucro que se dá basicamente por um conceito explicado historicamente pelo marxismo, a mais-valia.
O mundo pós-pandemia vai exigir esse esforço por parte dos países desenvolvidos, pois precisaremos superar essa crise na qual estamos inseridos, perdendo muitas vidas e deixando muitas sequelas para as próximas gerações, afinal, milhões de mortes no mundo inteiro terão um impacto que ainda não foi medido no cotidiano das pessoas. Essas pessoas que foram atingidas diretamente com a perda do seus para além das sequelas sentimentais e dos laços familiares, também existem as sequelas econômicas. E a economia pode sofrer um tempo para se recuperar do baque sofrido pela pandemia. Isso faz com que, espertamente, o regime capitalista resgate o papel do Estado para que não seja ele a sofrer com esses impactos econômicos desta crise sanitária.
No entanto, o importante é saber que no Brasil teremos impactos de formas diferentes do que acontecerá em outros países. Afinal, havia já em curso no Brasil uma ofensiva do capital, podemos dizer do capitalismo nacional e estrangeiro, como dissemos acima, que se estabeleceu com o golpe institucional e parlamentar de agosto de 2016 e que de lá para cá vem numa toada de desmonte do Estado, com a implementação de uma política devastadora conhecida como lógica de estado mínimo, que avança sobre todos os direitos da classe trabalhadora acabando com suas conquistas históricas, retirando do mais importante instrumento de defesa dos direitos da classe trabalhadora, a Consolidação das Leis do trabalho − a CLT − mais de duzentos itens, todos que prejudicam as trabalhadoras e as trabalhadores, e nenhuma, pasmem, nenhuma linha da reforma trabalhista que destruiu a CLT prejudica os patrões. Dentre outros danos, essa política de retirada dos direitos trabalhistas aprofundou as terceirizações sem limites. Por outro lado, a ofensiva do capital ataca ferozmente a previdência pública, deixando gerações à mercê de ter que trabalhar por mais de quarenta anos consecutivos para poder ter o digno direito de se aposentar e ainda poder aproveitar um pouco da vida após contribuírem com sua parte para o desenvolvimento do país.
Outro aspecto importante da ofensiva do capital é a tentativa de acabar com os serviços públicos, que já vem há algum tempo − desde a emenda constitucional 95 – que regulamentava o controle de gastos públicos, congelando-os por mais de 20 anos, engessando a possibilidade de ampliar e consolidar uma política de estado que vinha sendo implementada durante os governos democráticos e populares. E agora, seguindo a lógica do ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, do desgoverno Bolsonaro, de que poderiam aproveitar a situação para “passar a boiada”, apresentam a PEC-32 que quer fazer uma reforma administrativa que será uma pá de cal nos serviços públicos municipais, estaduais e federais. Pois tenta novamente deixar o serviço público à mercê dos prefeitos, governadores e presidente, acabando com o os concursos, com a impessoalidade dos servidores e também com a estabilidade. Flexibilizando de sobremaneira a contratação e privilegiando aqueles que se ligam a mandatos e as campanhas eleitorais.
Toda essa realidade de desmonte do que é público está colocada em meio à pandemia que no Brasil, diferentemente do mundo todo, está longe de acabar, muito pelo contrário, pois temos um governo negacionista que ao invés de fortalecer o serviço público como instrumento de combate à pandemia, o ataca. Mas vimos que se não fosse o Sistema Único de Saúde, o SUS, que é público e gratuito, talvez estivéssemos enfrentando um quadro ainda mais catastrófico do que temos, que já chega a mais de 510.000 mortes no Brasil.
O Brasil, que vai na contramão mundial em todos os setores, tanto é que não estava incluído nas últimas e principais cúpulas globais e muito menos na Conferência que reuniu diversos países, pois o Brasil vai muito mal, seja sobre o combate a pandemia, seja sobre clima e preservação das florestas, seja sobre a economia, seja sobre as relações internas ou internacionais do desgoverno. Ou seja: do ponto de vista internacional está totalmente isolado, sem referências e sem apoio. A última referência a qual o Brasil se abraçava era o moribundo governo de extrema direita de Donald Trump, que foi fragorosamente derrotado pelos democratas nas eleições dos Estados Unidos.
Por isso é fundamental que tenhamos a clareza que precisamos nos debruçar tanto na política, na economia e na ciência para entendermos os desafios sociais de nosso tempo, porque se dependermos somente da lógica capitalista, veremos somente pequenas ações no sentido da sua autopreservação, diferentemente do que acontece em diversos países do mundo na construção de alternativas viáveis de superar as crises com iniciativas sustentáveis, inclusivas e solidária para seguir em frente num mundo pós-pandemia. E em que entender diferente o papel do Estado, para que seja efetivamente usado como instrumento para construir um estado forte e com participação social, e não seja somente considerado um instrumento de solução paliativa de tempos em tempos históricos, quando o capitalismo precisa se autopreservar.
Somente com uma nova concepção de compreender o papel do estado, que seja efetivamente um instrumento de transformação social e de construção de um mínimo de equilíbrio social é que poderemos avançar para além da visão mesquinha e devastadora que o capitalismo tem do Estado, que só serve como instrumento de dominação legítima da força e para de tempos em tempos salvá-lo das crises cíclicas do próprio capitalismo.
Marcio Kieller - Presidente da CUT/Paraná e Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná – UFPR
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